A terna brutalidade de Gustavo Rios | Mariposa Cartonera
Resenha sobre o livro Rapsódia Bruta, de Gustavo Rios
gustavo rios, rapsódia bruta
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A terna brutalidade de Gustavo Rios

A terna brutalidade de Gustavo Rios

Nílson Galvão*

Uma bota punk recortada sobre fundo negro pisa sem dó no título do livro grafado em vermelho: o despojamento na capa de “Rapsódia bruta”, de Gustavo Rios, pela Virtual Books (2011) [1. A resenha se refere à primeira edição do livro. A segunda edição saiu pela Mariposa Cartonera, claro.], lembra um daqueles fanzines que na década de 80 exprimiam o espírito do faça-você-mesmo. Já o subtítulo, “poemas e outras brutalidades”, pode reforçar ainda mais a expectativa de uma obra centrada basicamente em cores primárias, porrada e anarquia.

Há, entretanto, uma considerável dubiedade entre tais sinalizações da embalagem e o conteúdo nada simplista. De um lado, pode-se considerar que o projeto estético um tanto unívoco, afinal belamente traduzido na capa assinada por Wilson Santana, é de certa forma cumprido à risca, mesmo que às vezes de maneira sutil, em cada um dos poemas e textos em prosa. De outro, e paradoxalmente, em qualquer página aberta ao acaso evidencia-se uma obra complexa, plena de matizes e inventividades.

Amplitude que se estende ao plano conceitual: “Rapsódia bruta”, na verdade, já parte daquele ponto em que se questionam, a um só tempo, os impasses da tradição e as desilusões da contracultura. E até mesmo, talvez, o bode que veio depois, com o fim do sonho hippie. É daí que se podem discernir, em meio à série rapsódica de textos em prosa e verso, as vozes que plasmam os malditos da literatura, maio 68, poesia marginal, pop, rock, niilismo – tudo em doses nem sempre equilibradas de dureza e ternura, o que confere ao conjunto um sabor às vezes ácido, outras doce, muitas vezes agridoce.

“Escrever é gritar em silêncio”, diz um dos melhores poemas do livro. A frase que surge entre parêntesis meio que sintetiza o próprio estilo de Gustavo Rios: um misto de suavidade e violência contidas, sempre engajadas no intento de mostrar a vida como ela é, mas pouco afeitas a arroubos expressivos desnecessários. E por aí os textos de “Rapsódia bruta” de fato chegam ao leitor como se berrassem para dentro, forjados numa atitude não apenas artística ou intelectual, mas propriamente existencial. Afinal estamos nessa porque “o mundo é cão, my friend”, ele avisa. E quem há de negar?

E quem haverá de ignorar o apelo de um Kerouac irremediavelmente morto e no entanto redivivo – nem que seja num anúncio onde se diz que o santo beatnik “usava Cáqui”? Ou de um embate entre a cinza dos dias, a confusão das cores de uma manhã ordinária e o uivo sem fim de Allen Ginsberg? Ou do tom corrosivo de “Caos Technicolor”, onde convivem um tanto de Bukowski e outro de Augusto dos Anjos a dizer que aprendeu “a rir das próprias desgraças”?

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Numa sucessão de imagens belas e provocativas, o sujeito do texto pode ser cínico e dizer que um novo amor “é como vestir um terno num enfadonho dia nublado”. Ou encarnar um lírico saudosista e desbocado a beber com reis e escritores mortos enquanto distrai seus fantasmas pessoais contando-lhes piadas picantes, a “desenhar bocetas nos muros do meu bairro / com carvão e pedra cascalho / caralho”. Em outra parte ainda, ser um afiado libertino para quem “um triângulo (de três lados) / muitas vezes é mais bonito / que a austeridade exata / dos quadrados”.

Somam-se muitos outros sujeitos, como o taciturno cego à compaixão dos outros (“não quero ver minha dor / refletida em olhos alheios / a dor é minha / não quero espelhos”). Em contrapartida, o romântico acidental que pensa na garota desconhecida “enquanto as luzes do túnel Américo Simas / refletem / em meus óculos escuros”. Num outro diapasão, um trabalhador imolado pela vida burguesa, que oferece à amada “o que sobrar do meu corpo mutilado”, depois de entregar pernas e braços ao patrão, cérebro e estupidez à escola, olhos à TV, um sorriso natalino a dezembro, fantasias e ilusões ao carnaval. Ecos de Foucault?

Mas há lugar também, no painel de ternas brutalidades, para construções tão prosaicas e certeiras quanto as de inspirados poetas da praça. Em caixa alta, constituindo-se portanto no único texto do livro a assumir o megafone para chamar a atenção da platéia, o poema número 5 tem mesmo o direito de pavonear a sua força expressiva: “PARA OS CARROS QUE PASSAM / O SINAL É O VERDE / PARA OS MENINOS QUE ESMOLAM / O SINAL / DEFINITIVAMENTE / É O VERMELHO”. Poesia que é poesia, no final das contas, precisa mesmo de muito pouco para dizer a que veio.

* Nílson Galvão é jornalista e poeta. Publicou “Caixa Preta” pela coleção Cartas Bahianas, da P55 Edições.

Resenha publicada originalmente na revista Verbo 21

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